quarta-feira, 27 de abril de 2016

O clima de Anjou, da Normandia, e o impacto cultural do Relatório Cruls


A presença de uma carta de A. Glaziou no relatório da primeira Missão Cruls — da qual não participou (só da segunda) — é uma curiosidade instigante.

A primeira Missão Cruls "teve" dois relatórios. O primeiro, apesentado ao governo e publicado no Diário Oficial (Jun. 1893), ficou conhecido como "relatório parcial". Foi rápido como o próprio trabalho de campo — praticamente um raid, direto e objetivo. Local, roteiro, caminho, tudo já estava indicado havia 20 anos, por Varnhagen.

Produzir o que ficou conhecido como "relatório completo" (2 vol., Dez. 1894), era outra estória. Tratava-se do maior e mais completo levantamento realizado até então em uma região do país. Dizer que Brasília foi a primeira cidade precedida de relatório de impacto ambiental ("EIA-RIMA") é dizer pouco. Foi um acontecimento, no panorama científico da época. O positivismo levado ao ápice. Mas não havia calculadora, AutoCAD, câmeras digitais, nem Photoshop. Ainda ficavam muitos quilômetros de prancheta pela frente. Votar verba para a tipografia — que precisava encomendar na Europa o material necessário e esperar que chegasse. — Não era um "livro" qualquer.

Nesse meio tempo, deu-se a chamada Revolta da Armada. O Rio de Janeiro foi bombardeado. O governo fluminense fugiu de Niterói para a serra (a "nova capital" fluminense ainda não existia). Navios de guerra das "potências europeias" e norteamericanos estabeleceram-se na baía de Guanabara — para "proteger" seus cidadãos e respectivas propriedades. Sondado sobre como receberia um desembarque "amigável", para "ajudar", Floriano Peixoto respondeu que "a bala". E boa parte da equipe de Cruls deixou as pranchetas para reforçar a defesa da capital da recém instalada República. Era a prioridade absoluta. Sem independência, para que uma capital no interior?

Quando o "relatório completo" finalmente saiu da tipografia, em Dez. 1894, Luís Cruls já estava longe, na segunda Missão — agora, não mais de "exploração do planalto central" mas, já, de "estudos da nova capital da União". Tratava-se de instalar estação meteorológica, posto telegráfico, levantar a navegação dos rios desde o litoral, traçar as ligações ferroviárias da futura capital a todas as regiões do país.

Desta segunda "Missão Cruls", sim, fez parte o botânico A. Glaziou — cuja carta Cruls fez incluir, de última hora, logo na abertura do "relatório completo" da primeira Missão, aproveitando a demora da publicação luxuosa. E a carta de Glaziou foi o grande destaque, entre todos os textos do Relatório “completo” da primeira Missão Cruls — a julgar pelo número de transcrições que mereceu, nos mais diversos jornais do Brasil e da Europa. Difícil duvidar de que esse tenha sido o objetivo de Cruls.

Naquela carta, escrita bem a tempo de "prefaciar" o fantástico relatório "completo" da expedição anterior, Glaziou dizia, por exemplo, que o planalto central "lembra-me o Anjú, a Normandia e mais ainda a Bretanha, excepto todavia na direcção Oeste onde campêa a Serra dos Pyreneus, tão pittoresca".

Dito por um sábio renomado, — e, acima de tudo, europeu! — Anjou... Normandie... Bretagne... — Que suaves luminosidades não evocariam tais palavras, aos ouvidos colonizados das "camadas urbanas médias", no verão do Rio de Janeiro, ansiando por "civilização", em seus coletes e colarinhos?

O disciplinado engenheiro militar belga Louis Cruls, embora ligado a uma sucessão ininterrupta de projetos liberais de construção de um país tropical voltado para seu vasto interior, para a integração dos mercados internos (os "arquipélagos", então ligados só pela navegação costeira, e os "sertões", "desertões") e para a fusão de suas populações em uma cidadania, não deixou nenhum traço de atividade política direta. Usar um pouco de "psicologia", como neste caso, era o caminho deixado ao estrangeiro imigrado.

Na França da Revolução, era "francês" quem quisesse ser, e adotasse a língua francesa. A escola foi a ferramenta para padronizar a língua oficial (sufocando sabe-se lá quantas outras), estabelecendo o link direto de cada cidadão com o aparelho do Estado nacional, sem intermediários (servidões, baronatos, lealdades). Como em tantas outras coisas, seguia (adaptando) iniciativas em implantação na Revolução Americana. Nos EUA das 13 colônias, era "americano" quem quisesse ser, e adotasse a língua inglesa, para ligação direta com as leis e instituições da chamada democracia.

No Brasil de Varnhagen, Cruls, Glaziou e tantos outros, ser "súdito" (não, "cidadão", é bom lembrar) era favor de SMI, o Imperador, e podia custar décadas de "serviços" prestados a ele, inclusive de formas vagas, ambíguas, pouco claras e, muitas vezes, não remunerada.

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